terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Quando a música deixar de ter sentido



Quando a música deixar de ter sentido
E nem o som do silêncio for sincero
Quando as contas dos terços, os mistérios
Acumularem-se em preces inaudíveis
Quando o brilho, a luz do dia não pintar
E a noite for sem manto estrelado
Quando o choro for sempre abafado
Pelos alardiantes estampidos
Quando todos propagarem inimigos
E apontarem dedos sujos a outras faces
Quando dentre dez mil homens
Existirem mais covardes
Que o joio que se mistura ao trigo
Quando navegar não for mais tão preciso
Quando o barco seguir sem despedida
Quando a namorada não sorrir, bonita
Finalizando a espera demorada
Quando o beijo intenso e apaixonado
Só viver nos versos da poesia
Quando não se ouvirem mais bons dias
Do velho caminhante que segue a estrada
Quando não houver mais borboletas
Com seus braços coloridos a se abrirem
Quando a flor desabrochar sem cintilância
Ou pior, quando os ipês não mais florirem
Quando a utopia no horizonte não for bela
Quando bombardearem as primaveras
E as pétalas choverem mortas, murchas
Quando outonos misturarem-se aos invernos
Quando o mundo parecer mais um inferno
A arder e congelar em seus mil círculos.
Quando todos sentimentos forem breves
E viver a ninguém emocionar
Quando nada nesta vida for sagrado
Pedirei a Deus que, por favor, me leve.

(Yvanna Oliveira)

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Ouça-me


Ouça-me com atenção e com apreço
Os apelos mais tolos que eu fizer
Ouve os sussurros da tua mulher
Pois só de indiferença é que eu padeço.

Importe-se comigo do começo
Às últimas palavras que eu disser
E ainda se em silêncio eu estiver
Me tenha o amor e o zelo que eu mereço.

Eu quero a cada sol o teu bom dia
Mas tua ausência, a tua apatia
São golpes na penumbra a me ferir.

É triste a voz do amor que silencia
Mortal o eco de melancolia
Da palavra que não se faz ouvir.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

A confissão [1]


Seguira o ensinamento, matou sem sentir ódio. Por isso se sentia diferente das outras tantas que ocupavam aquela cela.

“Aquelas putas estavam presas pelas infâmias mais desprezíveis. Uma delas tinha deixado o filho de três anos na boca enquanto trepava com o chefão de lá...  Vê se pode! Quando a polícia invadiu o local não deu outra, vadia na cadeia e criança no abrigo. Outra sentiu tanta inveja quando descobriu na gaveta de cuecas o presente caríssimo que o marido comprou para amante que fez do safado pedacinhos, ‘a sala da casa parecia um matadouro de beira de esquina e o meu marido o mais idiota dos touros desossados’, confessava ela envaidecida ao narrar o fatídico.

Comigo não. Comigo foi diferente. Acordei naquela manhã de domingo decidida a por em prática o ensinamento, a imundície não está em matar, em ceifar a vida do outro, a imundície está em deixar-se dominar pelo ódio. Eu amava o filho da mãe e de tanto amor decidi: o último suspiro seria de alívio, de excitação. Passei a manhã inteira entretida na premeditação de cada segundo, nas possibilidades de descoberta, nos limites das dores, no sorriso que ele daria ou na lágrima que eu veria escorrer. Pensei não só nos detalhes instrumentais, na arma do crime, no modo de usá-la ou mesmo no local mais adequado para guardá-la nos momentos antes da execução, pensei, sobretudo, no lado emocional daquele instante que se aproximava mais e mais.

À noite, quando o recebi em minha casa já estava com cada passo (dele e meu) traçado. Já havia escolhido a música, já havia posto a mesa do jantar. Tudo transcorreu como pensei, conversa agradável e muita paquera nos nossos olhares. Pela madrugada, depois que deitamos juntos sobre os lençóis de seda de minha cama, entre suor e saliva, entre êxtase e alívio, chegara o momento. O meu abraço apertado controlava o tremor do corpo dele, enquanto eu pegava de um jeito discreto a arma guardada propositalmente dentro do travesseiro. O orgasmo dele foi aliviado com um estampido abafado. Debruçou-se para trás. Morreu feliz.

A nossa aliança estava feita, apenas por formalidade coloquei um anel no dedo anelar dele e outro no meu. Acendi um cigarro, depois outro, depois outro, e fiquei ali sentada no chão do quarto esperando a lua despedir-se do céu enquanto eu, na companhia suave e silenciosa do meu homem, pude sentir o pensamento vazio e uma paz imensurável.  Disseram que eu enlouqueci, me divirto com essa concepção sobre a minha lucidez. Não havia ódio, sequer raiva, havia amor, sublime e pleno amor. Recuso-me todas as manhãs de narrar as sequências de fatos e os motivos do meu ato. Aquelas putas  não iriam entender.”



[1] Transcrição nº** do áudio de uma entrevista concedida pela maritricida ***, no ano de 20**,  em tratamento no manicômio judiciário  ***.


(Yvanna Oliveira)
entreprosaepoesia.blogspot.com.br